Ignez Pitta de Almeida

Pedagoga, historiadora e escritora de poesias sobre o passado e o presente de Barreiras.. Fundadora da Academia Barreirense de Letras. Filha de imigrantes, Ignez herdou a admiração do seu pai pelas terras do Cerrado. Ela se dedica a preservar e divulgar a história de sua cidade, colecionando documentos, fotografias e objetos históricos que foram incorporados ao acervo do Museu Municipal Napoleão de Mattos Macedo. Ignez é casada, tem três filhos e netas.

Dona Ignez durante a entrevista em junho de 2022

Na entrevista para a equipe Epopeia do Agro, Ignez fala sobre a região de São Desidério e Barreiras, cidades da região oeste da Bahia e Casa Nova, pertencente à microrregião de Juazeiro, mais precisamente localizada no Médio São Francisco.  

Antigamente, quando não havia estradas, a navegação na bacia do Rio Grande era o principal meio de transporte. O porto de Barreiras chegava a receber dez navios de uma só vez, incluindo navios a vapor, que eram populares na navegação fluvial, e depois as barcas mais modernas movidas a óleo diesel. 

Navio a vapor pertencente à empresa do Coronel Antônio Balbino de Carvalho – Reprodução: Documentos Barreirenses, Coleção do Professor, 2005

Dona Ignez conta que a fundação de Barreiras está ligada à produção de borracha no Cerrado, coberto por mangabeiras. Em 1870, Barreiras era apenas um povoado, chamado São João das Barreiras, e essa demanda da indústria internacional gerou um grande fator de enriquecimento para a região. O nome atual da cidade se originou das barcas que chegavam e não conseguiam prosseguir viagem rio acima devido a uma formação de pedras naturais que bloqueava a navegação. Essas formações são conhecidas como “barreiras”. 

A partir da década de 1970, a navegação deixou de ser possível devido à construção da barragem de Sobradinho, que criou um dos maiores lagos artificiais do mundo, impossibilitando o tráfego de navios. Barreiras enfrentou grande dificuldade para o escoamento da produção agrícola e outros produtos industrializados na região. As estradas asfaltadas na região só começaram a ser construídas após a chegada do 4º BEC (Batalhão de Engenharia de Construção), em 1972. Havia apenas uma estrada para Brasília aberta na década de 50 pelo então presidente Juscelino Kubitscheck.  Na época, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) solicitou a abertura de um hospital, uma vez que o trabalho manual na construção de estradas poderia levar a acidentes. 

O hospital já havia sido construído e doado pelo doutor Geraldo Rocha ao presidente Eurico Dutra em 1946, mas só foi inaugurado depois pelo DNOCS. Dona Ignez destaca que o primeiro médico barreirense a fazer especialização em cirurgia foi Herculano Faria Filho, membro de uma das famílias fundadoras da cidade. O filho Orlando continuou o legado do pai, exercendo a profissão de médico e a sua admiração por Barreiras, escrevendo um livro que contribuiu para o início da Academia Barreirense de Letras.

Até 1970, o sistema de transporte de Barreiras consistia em duas companhias de navegação a vapor que levavam pessoas e mercadorias para Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. A cidade tinha uma fábrica de tecidos de algodão, cuja pluma era levada para Belo Horizonte e os caroços eram prensados em Petrolina para extrair óleo e produzir ração para o gado. Quando a navegação foi encerrada antes das estradas serem construídas, não havia mais possibilidade de transportar as mercadorias e o algodão, principal fonte de renda, deixou de ser produzido. Isso aconteceu porque quando o 4º BEC iniciou as operações na região, uma parte do pessoal foi fazer as estradas e outros foram fazer o próprio quartel deles e as vilas, o que levou alguns anos até ficarem prontas. A falta de planejamento dificultou muito a vida das pessoas que moravam em Barreiras, principalmente no período de chuvas:

“Um ônibus parava aqui e botava uma corda, as pessoas saíam penduradas para pegar outro do outro lado, isso até ser asfaltada a estrada, mas apesar de tudo isso, a coisa andava porque precisava, eu mesma quando neste período de pegar na corda, eu não tive coragem”

Na época, a Dona Ignez precisava viajar para Salvador pois havia começado a trabalhar no FUNRURAL (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural). Ela deixou a profissão de educadora para amparar os agricultores que enfrentavam condições precárias de trabalho, alguns sem condições mínimas de moradia e alimentação. Ignez continuou trabalhando no órgão por 17 anos até a sua extinção durante a gestão do presidente Collor. 

Para realizar esse trajeto, Dona Ignez cita também o aeroporto de Barreiras, indicando que foi construído estrategicamente e por isso considerado um dos mais importantes do Brasil em 1964. Geraldo Rocha, que observou que Barreiras estava bem no epicentro dessa rota, de Belém ao Rio de Janeiro, fez contato com a Pan Am do Brasil, fundada pela Pan American, que era a companhia que fazia essa rota dos Estados Unidos ao Rio de Janeiro e Buenos Aires. Então, eles verificaram que se construíssem um aeroporto, o avião tinha condição de ser reabastecido por causa da linha hidroviária e ferroviária, diminuindo o tempo de viagem e o preço da passagem.

“Na inauguração em 1941, Getúlio Vargas veio, mas não desceu aqui na cidade, ficou só lá em cima junto com as autoridades americanas, inclusive saiu um artigo na revista Times americana com esse título “dois dias a menos para o Rio”

Até 1945, o aeroporto também sediou uma base militar de guerra. Ele foi construído em formato de rosa dos ventos e é possível ver nas fotos de satélite. Esse formato possibilita escolher a pista de pouso dependendo da direção do vento. Atualmente, Ignez Pitta se empenha em preservar a última casa original do tempo da construção do aeroporto de Barreiras.

Aeroporto de Barreiras – Imagem: Google Earth, via FlightRadar24

Durante a entrevista, Dona Ignez explicou a origem da região de Barreiras. Fizemos uma breve estruturação utilizando relatos de sua entrevista e informações registradas por ela em um de seus livros que conta em detalhes toda a origem, assim como o livro “O Rio São Francisco” de Geraldo Rocha.

A colonização do território do oeste da Bahia teve início a partir da identificação pelos bandeirantes de que aqui se encontravam condições favoráveis de clima e solo para agropecuária, verificando uma imensa bacia hidrográfica composta de rios perenes. Na divisão do Brasil em capitanias, em 1534, D. João III doou ao português Duarte Coelho Pereira toda a área desde o litoral, seguindo à esquerda do rio São Francisco, até a divisa de onde é hoje Minas Gerais. Em 1549 Tomé de Sousa, o primeiro governador geral da Colônia chega no atual estado da Bahia, trazendo com ele Francisco Garcia D’ Ávila, quem deu de fato o início ao desbravamento da região.

Garcia D’ Ávila era filho natural de Tomé de Souza e recebeu uma área de terra perto de Salvador, onde construiu a casa da Torre, que foi a única casa fortificada feita de pedra na área, ficando conhecido como Conde da Torre. A partir disso a família começou a explorar o interior, chegando até Ibotirama e Barra, que eram fazendas deles. Uma parte da região era da família D’ Ávila e a outra parte era do Morgado da casa da ponte em Morro do Chapéu. Dona Ignez explicou que os reis doaram terras para pessoas ricas na expectativa de defender o território de invasores estrangeiros. Antônio Guedes de Brito, sesmeiro de 160 léguas do rio São Francisco (aproximadamente 960 km), era dono de uma grande área em Barreiras, mas não conseguiu explorar porque era muito extenso e os seus descendentes optaram por vender a terra. Em 1749, João Martins foi um dos compradores, ele recebeu uma carta de sesmaria do governador de Pernambuco relativa a 50 léguas de terra (aproximadamente 300 km). Ele fundou fazendas do outro lado do rio, onde hoje está São Desidério, e em Barreiras fundou a fazenda Maravilha, hoje chamada de fazenda Água Doce do Dr. Geraldo. Anos depois os descendentes de João Martins venderam parte das terras aos irmãos Almeida, portugueses que chegaram a Angical no fim do século XVIII. Ao longo da história houveram mudanças de nomes e sedes, o que pode confundir a compreensão da continuidade histórica das fazendas na região.

Na região do Mucambo, existia a fazenda Tapera, onde se produzia rapadura, açúcar e cachaça. Em seus estudos, Dona Ignez ficou sabendo que a sede da fazenda já abrigou inclusive um Quilombo. Segundo ela, essas informações são questionáveis pois, neste local era a sede da fazenda Tapera.

A produção agrícola incluía feijão, arroz, farinha, tapioca, rapadura, cachaça, algodão e mangaba. A mangaba, inclusive, foi um produto que abriu caminho para tudo, pois a agricultura era mais lenta na época. Quando o Porto foi estabelecido em Barreiras, em 1825, começou a haver mais movimento na região. Plácido Barbosa, funcionário de José Joaquim Almeida, o Coronel de Angical, foi o primeiro habitante de Barreiras. As barcas traziam produtos industrializados de Juazeiro e levavam a produção rural para outras áreas secas da Bahia. 

“Em 1927, meu pai estava em Casa Nova, onde hoje existe até uma vinícola devido à irrigação. Naquela época, muitos homens saíam daqui em busca de meios de subsistência, pois não chovia muito. Meu pai tinha uma lojinha e uma fazendinha, mas a situação era difícil. ”

A navegação no curso do rio Grande influenciou na criação de arraiais e cidades na região. Ignez explica que o arraial era o primeiro núcleo oficial, que depois evoluiu para municípios, sua criação tinha como objetivo proporcionar mais segurança para os povoados e fazendas da região, legalizando as suas atividades agrícolas. 

Na época em que a Dona Ignez estava trabalhando com os documentos do FUNRURAL, ela ficou sabendo de uma lenda da fundação da região onde atualmente é o município de Mansidão, no oeste da Bahia. A tradição oral relata que os escravos fugitivos de Zumbi dos Palmares se estabeleceram nas margens do Rio Preto, o nome Mansidão vem de um boi que era muito manso. Ignez mostra como a história da região de Barreiras é complexa e cheia de nuances, mas que pode ser compreendida por meio de estudos e pesquisas.

Dona Ignez durante a entrevista em junho de 2022

As fazendas antigas foram originadas de cartas de sesmaria e foram legalizadas através de venda e regularização. A maior parte da região foi dividida em fazendas, menos a parte do cerrado onde o solo era mais ácido, inadequado para agricultura e a pastagem do gado. 

Ela explica que a irrigação começou na região oeste da Bahia por volta da década de 1970, mas como todo novo projeto enfrentou grandes dificuldades, não surtindo o resultado desejado na época.  No entanto, outras regiões semiáridas tiveram um impacto positivo com a irrigação, produzindo frutas, incentivando por exemplo o estabelecimento de vinícolas que não existiam antes. Hoje, a situação está bem diferente, a irrigação na região se destaca em eficiência na agricultura irrigada, proporcionando o cultivo em áreas antes consideradas improdutivas devido a baixa pluviosidade anual. 

Até 1979, não havia pesquisas para solucionar o problema da infecundidade da terra do solo, embora houvesse água, chuva e a nascente dos rios. Nessa época, Constantino Oliveira, pai da Deputada Jusmari Oliveira, conheceu os dois agrônomos de Brasília que estavam à procura de terras na região. Antônio Guadagnin e Hilário Kappes trouxeram uma solução para a correção da acidez do solo: a aplicação do calcário dolomítico moído. Os dois já foram entrevistados anteriormente pela equipe Epopeia do Agro.

Nessa época houve um fluxo de migração de agricultores vindos do Sul e Sudeste, incluindo Antônio Guadagnin e Hilário Kappes que vieram com a sua família. Eles relatam a dificuldade na compra das propriedades, pois as escrituras no cartório eram antigas. Não havia uma demarcação clara do tamanho das áreas, alguns registros vieram de livros forais em Pernambuco, datados no período das capitanias hereditárias no Brasil. As medidas das terras eram negociadas de acordo com o valor da escritura. Dona Ignez critica a omissão do governo do Estado da Bahia perante a regularização das terras no passado, envolvendo mais de 10 milhões de hectares aproximadamente, de acordo com ela.

Ela descreve um episódio em que o coronel Francisco Rocha, chefe político de Barreiras em 1930, sabotou a campanha eleitoral de Getúlio Vargas, impedindo que um navio a vapor com a equipe do candidato chegasse à cidade. Vargas perdeu a eleição para Júlio Prestes, mas deu um golpe de estado e assumiu o poder. O coronel Francisco Rocha foi preso e houve uma investigação das contas do prefeito. A escola agrícola em Barreiras, importante espaço de formação educacional, foi transferida para Aracaju (SE) como forma de retaliação. Dona Ignez guarda muito material sobre o aprendizado agrícola, incluindo fotos e papéis. Ela diz que muitos meninos da zona rural e de outros municípios estudaram na escola agrícola, incluindo seu sogro, que era interno.

Além disso, muitos governadores foram substituídos por militares, e isso afetou negativamente a população indígena. Houve uma ordem para atacar a aldeia dos Aricobés, mas o líder indígena, Zé Bereba, conseguiu fugir com a maioria dos indígenas para Goiás. 

“Então, essas pessoas que desde 1705 tiveram missionários, tiveram terra, tiveram agricultura, tiveram tudo perderam assim absolutamente tudo nesse período de Getúlio Vargas e hoje são várias pessoas muito pobres”

Dona Ignez conta que conheceu uma mulher indígena, filha de uma índia da missão de Aricobé, que hoje trabalha como empregada doméstica para sustentar sua família. Ela enfrenta dificuldades financeiras, especialmente durante a pandemia. A mãe dela tinha uma imagem especial de Nossa Senhora das Dores feita pelos indígenas, ela costumava levar essa imagem quando alguém adoecia, e acredita-se que isso trazia cura. 

Imagem de Nossa Senhora das Dores feita pelos indígenas – Reprodução: Documentos Barreirenses, Coleção do Professor, 2005:

“Essa imagem é única porque retrata Jesus usando uma tanga indígena, enquanto a roupa de Nossa Senhora segue os cânones cristãos, eu acho que eles não entenderam como vestir Jesus e optaram pela tanga. Infelizmente, a imagem não está mais como antes, mas há uma história interessante por trás disso. ”

Houve uma invasão na comunidade indígena, em que eles conseguiram escapar com a ajuda do líder Zé Bereba, guiando-os na fuga e desviando o caminho dos soldados. Infelizmente tudo que ficou para trás na comunidade foi destruído pelos soldados. Eles encontraram a imagem na casa da família da senhora:

“O soldado pegou, amarrou uma corda na cela de um cavalo e saiu correndo para acabar com a imagem batendo no chão, aí uns homens que não eram indígenas, a guerra não era com eles, foram na frente dele que não era para fazer aquilo. O soldado irritado foi lá, desamarrou e jogou no peito do homem de um deles que quase quebrou e a imagem perdeu a fisionomia”

Quando o bispo local, Dom Ricardo, viu a imagem, ficou impressionado e decidiu levá-la para Salvador, onde foi restaurada. Durante a restauração, descobriu-se que a imagem original era pintada a ouro, provavelmente devido à influência do ouro que vinha de Goiás. O bispo sabia da importância dessa imagem e pediu a ajuda à Dona Ignez para registrar a história por escrito, pois ela só era transmitida oralmente. Mesmo sem dinheiro para publicar um livro, decidiram publicar a história em um formato de jornal. A imagem de Nossa Senhora foi publicada como um postal na publicação.

Ignez Pitta decidiu contar esses fatos históricos aparentemente desconexos para mostrar que, embora não haja uma conexão aparente, eles aconteceram durante o mesmo governo e mostram um pouco da história da região. Apesar dos acontecimentos tristes e injustos, é importante conhecer para entender e valorizar a cultura e as dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas e os agricultores do Oeste da Bahia.


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