Hilário Kappes

Entrevista sobre a rede de familiares e amigos que migraram da região sul para o cerrado

Em entrevista para a equipe Epopeia do Agro, Hilário Kappes fala sobre o seu trabalho como agrônomo em Brasília, o processo de migração para o oeste da Bahia e os desafios que encontrou para permanecer empreendendo na região. Neste post mostramos a entrevista exclusiva no qual o agrônomo conta sobre a rede de amigos e familiares vindos da região sul para habitar o cerrado baiano.

Hilário Kappes e Antônio Guadagnin trabalharam em uma grande cooperativa à beira do lago de Itaipu no Paraná, entre as cidades de Guíra, Marechal Cândido Rondon e Santa Helena.  Nos anos 1970, quando foram iniciadas as obras da barragem de Itaipu, todas as terras do entorno precisaram ser desapropriadas pelo governo federal. Foi então que começou o processo de migração das famílias produtoras na região.

Inicio das obras em Itaipu em 1974 – Foto: Reprodução Itaipu Binacional

Na época, Luis Vicente Gertz – colega que trabalhou na cooperativa – contou que havia em Brasília terras com valor baixo e incentivos para plantio com recursos financiados pelo banco. Os agrônomos sulistas, entusiasmados com a notícia, marcaram uma entrevista com o Secretário da Agricultura:

Vocês vieram a calhar aqui. Tem uma região aqui, na saída para Unaí, que é um chapadão, não se planta nada, não se cria nada. Em Brasília importa quase tudo, a comida de São Paulo

Pedro do Carmo Dantas

Depois dessa conversa, Gertz começou a desenvolver um projeto de assentamento baseado na experiência de trabalho na cooperativa, estimava-se que “Brasília tinha dez vezes mais terras do que lá no Paraná – que eram 25 hectares cada área”. Este passou a ser o Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal (PAD/DF) vinculado ao Centro de Pesquisa Agropecuária dos Cerrados (CPAC) em Planaltina. Nesse período Hilário Kappes foi assessor do Secretário da Agricultura no Distrito Federal.

No início do programa foi difícil encontrar interessados em se mudar para uma região desconhecida. O Governo Federal através da Terracap, fazia um contrato de arrendamento para o agricultor, com prazo de 15 anos, renovável por mais 15. Os contratos valem como escritura para hipotecar no Banco. Nesse período, Hilário trabalhou assessorando estes agricultores na manutenção das máquinas agrícolas, enquanto Antônio trabalhava na EMATER. Os amigos nunca deixaram de lado o sonho de empreender o seu próprio negócio:

“Nós sempre estávamos procurando terras baratas, porque tínhamos pouco dinheiro. Aí ele tinha um corcel 1, e nós procuramos pelo Norte de Minas. Não sei se o Antônio (Guadagnin) já falou isso. Antes de vim pra cá [Barreiras-BA], nós fomos para Montes Claros, Januária, Montalvânia, até aqui Cocos, procurando terra barata e cerrado, porque nossa atividade lá em Brasília era sobre cerrado.” 

Essa busca levou os agrônomos para a região de Barreiras, na Bahia, há mais de 400 quilômetros de Brasília. Hilário e Antônio enxergaram um potencial empreendimento, assim que chegaram decidiram investir comprando terras para agricultura. Pedro Guedes foi o principal responsável por fornecer as linhas de crédito no Banco do Brasil, apoiando o desenvolvimento da região.

Ser pioneiro na região significa desbravar uma região até então desconhecida pelos sulistas. Hilário precisou trazer toda a maquinaria das terras do pai em Marechal Cândido Rondon (PR) em viagens que duraram mais de três dias. Ainda não havia estradas para passagem de carretas, principalmente no trecho de serra na cidade de São Desidério (BA), onde costumavam ficar presas.

São Desidério, na Bahia, no século 20 — Foto: Reprodução/IBGE

Abri com machado 11 km pra chegar na minha fazenda para poder levar as máquinas pra dentro. Aí, eu trouxe quatro meninos do Paraná (tratoristas) pra trabalhar; eu prometi salário bom pra eles, e 100 hectares de terra pra cada um, se eles ficassem uns três, quatro anos comigo. Só ficou um, os outros foram embora. Desistiram. 

Quando eu cheguei na fazenda; eu montei uma barraca de lona; fiz umas camas de tábuas; eu trouxe tábuas do Paraná; só com colchão em cima, pra não ficar no chão; eu fiquei lá, a semana toda lá junto; eu não tinha emprego, a minha mulher desempregada, eu desempregado; abandonei tudo!   

O agricultor enfrentou uma seca logo no primeiro ano de plantio, não havia calcário, os fertilizantes precisam vir de longe, trazidos por seu irmão de Uberlândia (MG).

“Foi tudo uma epopeia. Só que no primeiro ano eu não colhi porque a chuva acabou no fim de fevereiro; só choveu em outubro, depois, de novo. ” 

Para recuperar essa perda, Pedro Guedes recomendou o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro) criado pelo Governo Federal em 1973. O PROAGO cobriu uma pequena parte do custeio agrícola, mas o restante precisava ser financiado por recursos próprios dos produtores rurais. Nessa época as pesquisas sobre a produção agrícola no cerrado eram esporádicas, realizadas por institutos agronômicos de outras regiões do Brasil: Campinas (SP), Lavras (MG), Viçosa (MG) e Porto Alegre (RS). Somente muitos anos depois as pesquisas foram centralizadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA).

A falta de apoio dos órgãos públicos só aumentou o risco dos produtores pioneiros. Entre tentativas de erros e acertos, Hilário conseguiu se recuperar no ano seguinte colhendo 5 mil sacos de arroz. Os produtores compartilhavam suas experiências nos encontros entre amigos, criando uma rede de apoio que se estendeu por anos e facilitou a ida de outras famílias para região:

“Aonde tá o Hilário? Ah, eles estão lá em Brasília-DF, vão lá”.  O pessoal vinha à Brasília. Chegando em Brasília-DF, não tinha mais lote para distribuir: “Onde é que está o Hilário e o Antônio? Ah, eles estão na Bahia. Então, vamos pra Bahia!”. Eles vinham com dinheiro, da indenização de Itaipu; foi transferido muito dinheiro pra cá; outras pessoas também venderam as terras lá, houve uma série de coisas […]”

Em 1979, as primeiras escrituras de terras compradas no oeste da Bahia ainda eram registros paroquiais vindos de Olinda-PE. Hilário conta que descobriu que se tratava de terras doadas para famílias ricas estabelecerem grandes fazendas. Foi difícil fazer a transformação da medição topográfica de “mil réis de terra” para hectares porque não havia uma relação direta entre a dimensão e o valor das terras, tratava-se de uma negociação entre as partes envolvidas.

Era uma coisa esquisita. Por exemplo, eu falava com uma pessoa lá, ela tinha mil réis de terra, aí eu media, ou ele media 10.000 hectares; media topograficamente; ia no cartório de registro civil de hipotecas, e transformava automaticamente os mil réis em 10.000 hectares de terra, ou em 1.000 hectares de terra. As medidas eram negociadas de acordo com o valor da escritura.

“As áreas eram definidas; algumas, outra não, porque o cerrado, na verdade, eles davam valor só pra áreas perto do córrego; o cerrado mesmo, eles não ligavam; podia ir cercando que ninguém brigava, ninguém dizia nada.”

Apesar dos desafios encontrados, Hilário declara que se sentiu realizado com as suas conquistas nestas terras distantes: “Se eu morrer hoje, eu morro feliz da vida! Deus me deu muito mais do que eu pedi!”

No final da entrevista, conclui relembrando sua trajetória de vida, as razões que o levaram para o cerrado baiano desde muito jovem:

Olha como é que é a história da onde veio a minha loucura pelo cerrado. Quando eu ainda estava na Faculdade, na década de 60 a 70, o Pastor Norberto Schwanke, em Tenente Portela-RS, no Rio Grande do Sul, levou muitos agricultores para fundar duas cidades: Canarana e Barra do Garças no Mato Grosso. Aí, eu me empolguei com esse negócio, de cerrado. 

Meu pai tinha 25 hectares de terra, lá no Rio Grande do Sul, na época, e sete filhos. Qual é meu futuro? Depois, ele vendeu lá, foi pro Paraná, já aumentou a área, né?! Porque comprou terra de mata, mais barata. Aí, eu fui estudar; daí, pensei, eu vou pro cerrado, porque lá as terras eram muito caras, no Rio Grande Sul. Eu nunca vou ter terra com salário. Meu sonho era o seguinte: ser agrônomo e ter 200 hectares de terra.”

Agora que você já conhece a história da chegada do agrônomo Hilário Kappes no oeste da Bahia, confira os detalhes da entrevista com Antônio Guadagnin neste post preparado pela equipe Epopeia do Agro.

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